sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Vamos navegar nas Histórias


O Jardim Botânico e guerra mundial da biopirataria


Publicado em: 16/08/2010 | Autor: Laurentino Gomes
(Artigo publicado na revista eletrônica CropSpotters, edição de dezembro de 2009)


Em janeiro de 1809, um tropa brasileira apoiada pelos ingleses partiu de Belém do Pará e, em poucos dias, ocupou a Guiana Francesa praticamente sem resistência. A invasão o território francês, decidida pelo príncipe regente D. João logo ao chegar ao Rio de Janeiro, alguns meses antes, tinha dois objetivos. O primeiro era retaliar o imperador Napoleão Bonaparte que em novembro de 1807 tomara Lisboa e obrigara a família real portuguesa a fugir para o Brasil. O segundo, roubar dos franceses os preciosos tesouros botânicos cultivados no viveiro de Caiena, a capital da Guiana. 
Um desses tesouros era a carambola. Originária da Indonésia e do Ceilão, essa espécie asiática fora transplantada para a América por biopiratas franceses entre os séculos 16 e 17. Na Guiana, era guardada como um segredo de Estado. A primeira muda foi plantada no Brasil no Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 1811, embora seu cultivo só tenha de propagado mesmo seis anos mais tarde, a partir de Pernambuco. Além da carambola, as tropas invasoras portuguesas trouxeram para o Rio de Janeiro diversas outras espécies, incluindo a cana de Caiena que, adaptada às terras férteis da zona da mata nordestina, passaria a ser chamada de cana caiana, tema de uma famosa canção do compositor Alceu Valença. 
O saque do viveiro francês na Guiana foi parte do primeiro esforço organizado de melhorar o desempenho da agricultura brasileira com a introdução de novas espécies de interesse econômico. Até 1808, ano da chegada da corte ao Rio de Janeiro, o Brasil era o grande fornecedor de produtos primários para a metrópole portuguesa. A lista incluía madeira, açúcar  tabaco, algodão, carne de charque, couro de boi curtido e cachaça - item importante no tráfico de escravos com a África. Mas era uma produção rudimentar, atrasada, sem planejamento estratégico, resultado de três séculos de tentativas, erros e acertos no processo de colonização do Brasil. Com a chegada da corte, tudo isso mudou. A criação do Jardim Botânico no Rio de Janeiro é parte desse esforço de modernizar a agricultura brasileira. 
Nos três séculos anteriores, portugueses, espanhóis, ingleses e holandeses travaram uma guerra global pelo controle das especiarias, como eram chamadas no período colonial as plantas de interesse econômico. Incluíam frutas, flores, grãos e sementes usados como remédios, temperos e cosméticos, além da madeira destinada à indústria de corantes de tecidos e fabricação de navios. Algumas eram tão valiosas no mercado europeu como seriam mais tarde o ouro, o diamante e o petróleo. Seu preço comandava a economia internacional e fazia a fortuna de aventureiros e a glória de reis e rainhas. 
“Espécies que forneciam tinta ou açúcar, remédios ou carvão, fibras, alimentos, frutas, raízes  flores ou bebidas, eram buscadas pelos mares”, registrou a escritora Rosa Nepumuceno, autora de um livro sobre o Jardim Botânico do Rio de Janeiro. “Funcionavam como reserva de capital, produtos que poderiam garantir a saúde financeira de um reino”. Por essa razão, o cultivo dessas espécies fora de seus habitats era antiga obsessão dos europeus. 
Na era colonial, o Jardim da Éden das especiarias estava situado num vasto cinturão vagamente conhecido como “As Índias”. Compreendia, além do próprio subcontinente indiano, o Ceilão, a Malásia, as Filipinas, a Indonésia, e, principalmente, as Ilhas Molucas, paraíso de espécies como o cravo, a noz moscada e a canela. Até o século 14, o comércio das especiarias era monopólio dos árabes, que as revendiam aos mercadores de Veneza, de onde chegavam ao restante da Europa. A descoberta do caminho das Índias pelos mares, contornando o Cabo da Boa Esperança, mudou esse cenário. Com o poderio de seus canhões e a engenhosidade de suas caravelas, em pouco tempo os portugueses se tornaram os novos senhores desse lucrativo negócio. Mas seus domínios seriam disputados a ferro e fogo pelas demais potências europeias nos séculos seguintes. 
Em 1499, ao retornar a Lisboa ao final de sua primeira incursão à Índia  Vasco da Gama transportava uma carga sessenta vezes mais valiosa que o custo da sua expedição. A viagem do britânico Francis Drake entre 1577 e 1580, com escala nas Ilhas Molucas, rendeu aos seus investidores um lucro de 4.700%. Em 1603, quando os ingleses estabeleceram sua primeira colônia na Ilha de Run, nas vizinhanças da Nova Guiné, um fardo de 4,5 quilos de noz moscada era comprado na Ásia por meio centavo de libra esterlina e revendido na Inglaterra por um preço 32 000 vezes maior. 
A perspectiva de lucros tão exorbitantes passou a orientar as ações dos colonizadores. Ao ocupar a cidade de Goa, na Índia, no começo do século 16, os portugueses tomaram de imediato quatro providências. A primeira foi construir uma fortaleza para defender seu novo território. Em seguida, ergueram uma igreja e uma escola. Por fim, criaram um jardim botânico medicinal, onde os padres jesuítas iniciaram um rigoroso processo de experimentos com plantas indianas para identificar quais tinham poderes curativos para determinadas doenças. A tradução dessas pesquisas do português para outras línguas europeias é considerada a pedra fundamental da moderna farmacologia, segundo o jornalista e historiador britânico Martin Page. 
Ao chegar ao Brasil, em 1808, D. João criou a Real Junta do Comércio, Agricultura, Fábricas e Navegações, que tinha entre suas tarefas incentivar e premiar quem transplantasse para o Brasil plantas de interesse econômico. Um dois premiados foi Luís de Abreu Vieira de Paiva, oficial da Armada Real Portuguesa. Em 1809, Vieira de Paiva naufragou perto das Ilhas Maurício, no Oceano Índico, pertencentes à França. Ali, o botânico e ex-missionário Pierre Poivre tinha criado o Jardim de la Pamplemousse, destinado a aclimatar espécies da Ásia e das Américas. Poivre foi um grande biopirata, responsável, entre outras façanhas, pelo roubo na Ásia de mudas de pimenta-do-reino que, mais tarde, seriam cultivadas na América. Por isso, em sua homenagem, pimenta passou a se chamar poivre em francês. Salvo do naufrágio, Vieira de Paiva convenceu os franceses a libertar duzentos portugueses mantido prisioneiros nas ilhas e ainda trouxe para o Brasil vinte caixas de plantas para o novo horto do Rio de Janeiro. A carga incluía mudas de cânfora, cravo-da-índia, canela, noz-moscada, manga, lichia, cajá, abacate, acácias, nogueiras, abricós, frutas-pão e a famosa palmeira imperial que D. João teria plantado no Jardim Botânico em 1813. 
O Brasil já era um laboratório privilégiado na disputa pelas especiarias muito antes da chegada da corte portuguesa. Enquanto estimulava a pirataria de plantas de outras regiões, Lisboa promovia a exploração das novas especiarias brasileiras. O primeiro alvo de cobiça – e intensa disputa com os franceses – foi a própria madeira que daria nome ao novo território, o Pau Brasil, usado como matéria prima na tintura de tecidos. Em seguida, veio o ciclo da cana-de-açúcar, outra espécie de altíssimo valor econômico. Também foram estudadas e cultivadas as diversas variedades de pimenta da Amazônia, o guaraná, o urucum (substituto do açafrão), a castanha do Pará e uma infinidade de frutos e raízes usados na indústria de tintas e remédios. Mais tarde, duas descobertas iriam valorizar ainda mais os produtos da floresta brasileira: o cacau, matéria-prima do chocolate, e o cautchu, também conhecido como borracha, que haveria de revolucionar os meios de transportes junto com a invenção do automóvel.

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